Uma reflexão sobre a revista Crás!
Produto que mistura diversas tendências do quadrinho brasileiro daquele
momento com a experiência editorial de uma empresa voltada para o mercado, a revista
Crás!pode ser entendida como uma proposta ousada no sentido de tentar difundir a
produção quadrinhística nacional a um público acostumado às histórias em quadrinhos
mais tradicionais e comerciais. No entanto, parece ter se tratado muito mais de uma
iniciativa ligada ao idealismo de editores e artistas que trabalhavam naquele momento
na editora Abril do que propriamente de uma estratégia institucional dessa grande casa
publicadora no sentido de abrir o mercado para as produções nacionais.
Nessa iniciativa havia ainda uma clara intenção de valorizar a linguagem das
histórias em quadrinhos como legítima forma de manifestação artística, o que é
fortalecido pela série de matérias apresentada na segunda e terceira capas das revistas,
enfocando a História da história em quadrinhos no Brasil. Num total de seis capítulos,
esses textos sinalizavam ao leitor que o produto que este tinha em mãos dava
continuidade a uma tradição de narrativa gráfica seqüencial, da qual o Brasil fazia parte.
No entanto, embora pareça evidente que tal inserção era recebida com bons olhos por
leitores já envolvidos no ambiente de quadrinhos, para quem essas informações apenas
aprofundavam conhecimentos familiares, é questionável se a mensagem era recebida da
mesma forma pelo leitor comum das revistas da editora. Para este leitor, talvez a
inclusão desse tipo de material representasse apenas um incômodo ou uma distração em
relação ao conteúdo que realmente lhe interessava ler.
Como produto editorial, a publicação apresentava várias divergências em relação
aos produtos que a editora Abril colocava então no mercado, basicamente revistas
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infantis do gênero funny animalscom personagens já conhecidos pelos jovens leitores -
caso das revistas Disney -, e de títulos com grupos de crianças já disseminados em tiras
de jornal, que então se firmavam no mercado – as revistas do desenhista Maurício de
Sousa. Desta forma, a proposição da revista Crás!constituía uma aposta arriscada no
sentido de atingir, ao mesmo tempo, tanto leitores dessa faixa como de uma faixa etária
diversa, apostando na resposta positiva, porparte deles, a um grupo de personagens
totalmente desconhecido. Acrescenta-se a issoo fato das primeiras quatro edições do
título serem consideradas parte do selo Diversões Juvenis (2
a
Série), destinado a
apresentar aos leitores personagens ainda desconhecidos, como Abbot e Costello, A
Pantera Cor-de-Rosa, Folias Romanas, O Gordo e o Magro, entre outros, com alguns
deles ganhando publicações próprias.
Infelizmente, a reação dos leitores, pelo que se pode depreender de algumas
manifestações inseridas no número 2 da revista, foi no mínimo contraditória. Por um
lado, parte deles aplaudiu a iniciativa, entendendo-a como meritória e bem intencionada
no objetivo de valorizar os quadrinhos nacionais. Por outro lado, não faltou quem, como
o leitor Mauro Sérgio Silva Osório, estranhasse a linha editorial adotada pela revista: “O
que me intrigou foi que vocês reuniram os mais diversos traços de desenho, em uma só
revista. O traço não teria que ser uniforme do começo ao fim?” Outros, por sua vez,
questionaram a mistura de estilos e gêneros. Foi o caso de Alex Kauffman, que se
manifestou da seguinte forma: “Esta revista apresenta histórias sérias e leves, o que, a
meu ver, não é muito bom”.
A única voz feminina entre os leitores descontentes com a revista parece ter sido
a de Adriane Eli de Souza Sandano, de Niterói, que inquiriu os editores: “Se CRÁS! diz
que aceita trabalhos de amadores e profissionais, por que vocês já começaram
publicando trabalhos de desenhistas consagrados? Isso não limitaria muito a chance dos
amadores?”
Mesmo que se possa argumentar que as cartas incluídas na seção de
correspondência constituem uma amostra viciada, na medida em que escolhidas pelos
editores e publicadas de forma equilibrada, com três delas favoráveis e a mesma
quantidade contrárias à linha editorial adotada pela revista, elas são emblemáticas no
sentido de evidenciar o entendimento coletivo do público leitor sobre a proposta da
revista. Essa compreensão provavelmente estevena raiz da resposta insatisfatória que o
título obteve em termos de venda, razão de sua futura descontinuidade. Segundo o
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desenhista e roteirista Primaggio Mantovi, um dos colaboradores da revista Crás!, ela
chegou a vender 80 mil exemplares, quando a resposta esperada era de pelo menos 100
mil (apudNARANJO, 2005).
Questões relacionadas às próprias características do mercado de consumo no
país podem igualmente estar no fundo da mal sucedida tentativa de publicação da
revista Crás!Nesse sentido, é importante lembrar que a primeira metadeda década de
1970 representou um momento de incerteza para a sociedade brasileira. Recentemente
agredida por uma medida institucional que limitava grandemente as liberdades
individuais e cerceava a livre organização, a população, de uma maneira geral, vivia
uma situação de indecisão entre a acomodação ao existente e o desafio do novo,
convivendo com as conseqüências que a segunda opção podia trazer. Assim, manter-se
ligado àquilo que era conhecido e aceito parecia ser uma alternativa mais viável para
grande parte do público consumidor brasileiro, que se satisfazia, em suas tradicionais
incursões consumistas às bancas de jornal, com os produtos de costume. Arriscar-se
com outros não lhe trazia vantagens imediatas. Pelo contrário.
Pode-se afirmar que a situação mudou nas décadas seguintes, à medida que a
normalidade democrática voltou a se impor no país e as nuvens da repressão foram
pouco a pouco se afastando. Mas, na época de lançamento da revista Crás!, elas eram
ainda demasiadamente pesadas para qualquer reversão de expectativas. Assim, é
possível imaginar que, mais que por ser fruto de um excesso de idealismo de editores e
artistas, a revista também deve sua curta vida ao fato de estar adiante de seu tempo.
Por outro lado, um terceiro fator não pode ser desconsiderado na análise da
experiência de publicação de uma revista de temas e personagens variados de
quadrinhos em uma grande editora: a inexperiência de autores brasileiros com a
manutenção de histórias seriadas. Parte dos autores envolvidos com a revista Crás!ou
não tinha relações contratuais com a editora Abril, ou, por outro lado, acrescentava a
colaboração para a revista às muitas responsabilidades que tinha em relação à editora.
Ela representou, assim, um fardo a ser carregado por muitos deles, o que gerou
dificuldades para manutenção de qualquer periodicidade para o título. É o que parece
comprovar a verificação do intervalo de lançamento entre as edições da revista, que às
vezes chegou a atingir mais de quatro meses. Em um mercado basicamente sustentado
pelo colecionismo, a irregularidade de lançamentos representava uma barreira a mais –
e talvez a decisiva -, para a fidelidade dos leitores. Assim, não seria injusto afirmar que
aspectos relacionados à organização interna para a publicação da revista influíram
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grandemente em sua trajetória. Talvez ela tenha se tornado refém de limitado
planejamento editorial, surgindo prematuramente no mercado, sem ter todas as suas
necessidades de produção devidamente equacionadas. Nesse sentido, um dos
colaboradores mais destacados da Crás!, o desenhista Ruy Perotti, salientou que os
quadrinhistas tinham dificuldade para cumprir os prazos exigidos pelos editores, o que
agravou a falta de periodicidade da publicação
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Fonte site Intercom: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-0539-1.pdf
Em 1974 a Editora Abril começou a publicar uma nova proposta em quadrinhos, inspirada num formato europeu, que aparentemente era sucesso por lá. Nasceu assim a revista Crás!, que se propunha a “mostrar o trabalho de argumentistas e desenhistas, profissionais ou amadores, que, nos mais variados gêneros e estilos, buscam valorizar as histórias em quadrinhos brasileiras”.
Ótima ideia, as mais nobres intenções, e uma grande empresa do ramo editorial buscando se colocar a serviço da Nona Arte, mais do que realmente se preocupar apenas com as vendas. E apesar disso tudo (ou até mesmo por causa disso tudo) a revista durou apenas limitados 6 números. Em todo caso, papai teve a honra de participar do primeiro número com duas histórias, a primeira das quais comento hoje.
O roteiro de Vavavum, que conta com desenhos de Nico Rosso e Herrero, combina vários elementos recorrentes nas histórias Disney de papai, com outros que ocorriam mais nas não-Disney. Eu a considero “quase Disney”.
A paixão de papai pelas corridas automobilísticas é aqui refletido no personagem principal e seu super carro, com a mágica “sexta marcha”, que o leva a uma outra dimensão. Papai voltaria ao tema “corrida” em “O Pequeno Campeão”, de 1981, que eu já comentei aqui.
Outros temas recorrentes que vemos são por exemplo a reação do líder de uma das tribos que o corredor encontra, que se recusa a falar com ele por acreditar que ele não existe, que papai já havia usado numa história do Zé Carioca em 1973, “No Reino da Pindaíba”, que eu também já comentei, ou a incapacidade desse mesmo líder de conseguir montar um cavalo, coisa que papai também usou em vários personagens Disney.
Mas de resto a história é uma grande e intencional mistura: alguns personagens, armas e armaduras, e até mesmo nomes, se parecem com algo saído de uma lembrança histórica greco-romana. O filósofo na barrica, com seu cajado e sua lâmpada, é uma referência ao grego
Diógenes de Sinope. (Esse filósofo é, também, o “modelo” para uma carta de Tarot,
O Eremita.) Já a cidade tem grossas muralhas e prédios de vários andares e, apesar da aparência “antiga”, essa civilização tem até computadores, que são operados por uma equipe de “filósofos” e usados para prever ataques da tribo inimiga como nós faríamos a previsão do tempo.
E no meio dessa salada toda, Vavavum, habitante do século 20 e piloto de corridas, tenta entender o que está acontecendo, e como voltar para a sua própria dimensão. Finalmente, quando ele tenta se convencer que tudo não passou de uma alucinação causada pela velocidade, lá está a marca de uma pedrada em seu capacete, para provar que tudo aquilo não foi apenas ilusão.